A Caridade é a luz que nos revela a coisa mais extraordinária do mundo: o outro. Nem sempre conseguimos essa prodigiosa banalidade, e no meio da multidão sentimo-nos isolados, únicos, como se todas as pessoas que vemos não passassem de meras sombras, de sinais saídos de nosso interior (Gustavo Corção).
Nós homens somos mestres na arte de nos esquecermos e até julgarmos como fúteis - em troca de mantermos a atenção no que é secundário e com o que o turbilhão do mundo nos dispersa - aquilo que é realmente importante, permanente e, sim, mais sublime e que acontece na vida até do mais infeliz e miserável dos filhos de Adão, que cegos, julgam ser banal o corriqueiro e sublime apenas o extraordinário fruto do esforço humano. É sobre o achado da sublimidade de uma das maiores banalidades da existência terrestre que Gustavo Corção escreve no seu livro A Descoberta do Outro, onde o outrora engenheiro ateu e materialista narra a sua conversão ao catolicismo após ver a santa morte de sua primeira esposa.
Assim como nós mesmos, o outro é um mundo cheio de encantos e desencantos, qualidades e defeitos, potencialidades e limitações, virtudes e vícios, e outras tantas notas que poderiam ser listadas à exaustão e que me atrevo a resumir no dueto sublimidade e banalidade. O outro, como nós, carrega mistério, pois é uma pessoa imortal que independentemente de sua escolha é chamado ao ser e, dado fatal da nossa realidade, por ser espírito não deixará de ser quer queira quer não. O outro, como nós, também traz consigo o banal: somos animais e sofremos todas as necessidades que essa natureza carrega consigo; por sermos corpo somos mortais, outra fatalidade inegável da nossa realidade humana. O outro, como nós, é chamado a amar e ser amado, e como não se ama o que não se conhece, torna-se um imperativo urgente também descobri-lo.
O paciente leitor destas linhas talvez se pergunte: mas por que esse assunto agora, às portas do Natal? Não deveríamos estar falando da grandiosidade da vinda do Filho de Deus ao mundo? Sim, deveríamos. Assim como deveríamos nos lembrar que tal evento sublime se deu na banalidade de apenas mais um nascimento a ser contabilizado na mais longínqua e insignificante província do poderoso Império Romano. Tolos são os homens que pelo deslumbre da grandeza das obras humanas – Roma foi uma das maiores delas – deixam passar despercebida a sutileza da ação divina. Deus se rirá deles, Deus se rirá de nós. O acontecimento mais importante da história se dá numa manjedoura: Deus humildemente se rebaixa à nossa humanidade a fim de elevá-la, longe dos olhos do homem soberbo que, no seu ímpeto de rebelião, ao buscar se alçar sozinho para o alto, cai. O Filho de Deus se fez um outro de nós, não imortal como nós, pois eterno; não mortal como nós, pois senhor da morte. É isso que celebramos no Natal, Aquele que é capaz de vencer a morte, a mais temível das banalidades, se fez um de nós e assim, oferecendo-se em sacrifício – o único agradável a Deus Pai – para o nosso resgate e divinização, torna possível que a nossa natural imortalidade seja sobrenatural, na Glória eterna, no gozo da Felicidade do próprio Deus. O outro, assim como nós, custou o sangue de Deus.
Contemplar o mistério desse Outro e aceitar seu amor é a mais importante coisa que temos a fazer nesta vida – e isso deve ser a fonte de nossa esperança e de nossa caridade para com o próximo - sabendo que para Ele nós não somos meros outros misteriosos e opacos, mas outros límpidos e transparentes, pois Ele, “a luz que ilumina todo homem que vem ao mundo”, é mais íntimo de nós do que nós mesmos.
Mas nem todos os homens sofrem da tolice de Adão, há aqueles que não se deixam enganar pelo canto da serpente que nos tenta a sermos sublimes sem o Sublime, originais ignorantes da Origem, excelsos sem a humildade. O exemplo contrário, por excelência, é daquela que aceitou a missão de ser a geradora da humanidade do próprio Criador. No ícone da Sagrada Família, o olhar da Virgem Maria nos revela o que somos chamados a fazer neste Natal: diante da presença desse Outro, a Sabedoria de Deus feita carne, a Mãe de Deus O contempla; aceita não os limites Dele, mas os dela em entender a totalidade de tamanho mistério. Nos diz São Lucas que ela, a Sede da Sabedoria, meditava tudo no silêncio do seu coração. E quanto mais se medita, mais se conhece; e quanto mais se conhece, mais se ama; e quanto mais se ama – esse Outro que é a primeira Verdade que se deve buscar e que nos antecede no amor – mais ama o outro, o próximo, com a única forma verdadeira de amar: a Caridade, que é dom Daquele que nos ama mais que nós mesmos.
A Caridade é a luz que nos revela a coisa mais extraordinária do mundo: o outro. Nem sempre conseguimos essa prodigiosa banalidade...